Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Guiné-Bissau > "Região de Tombali > Cumbijã >Este vídeo gravado em 4 de maio de 2025 na tabanca de Cumbijã, foca o jogo de apresentação da nova equipa de futebol dos "Tigres de Cumbijã" e a sua maravilhosa paisagem envolvente" (diz o João Reis Melo, ex-1º cabo cripto, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74)...E eu acrescento: tem um maravilhoso tema musical, como fundo, "Guiné, nha tera".
1. Obrigado, João Reis Melo, grande "Tigre do Cumbijã". Aquela terra "verde-rubra" (sem conotações saudosistas...) ficou-te no coração. A ti e a nós... Parabéns pelo vídeo, é uma ternura da tua parte... E depois tem algo de extraterrestre: nunca tinha visto um jogo de futebol.... a partir do céu e com uma moldura de verde como essa. Um efeito f seantástico, tens muito talento para fazer vídeos e vejo qu estás bem equipado!
Mas deixa-me dizer-te que foi pena não teres identificado, no final do vídeo, na ficha técnica, o autor e os intérpretes do tema que escolheste como música de fundo ... Temos a obrigação de divulgar a música guineense, ajudar os seus músicos e respeitar os seus direitos de autor. (Se fossem músicos europeus ou americanos, o You Tube já te tinha silenciado o vídeo; por isso estou também grato ao autor e intérpretes da música pelo seu contributo para este vídeo maravilhoso do João Reis Melo.)
Quis saber mais sobre o tema musical que escolheste para o teu vídeo. Confesso que a letra e a música "mexeram comigo", apanhei algumas frases em crioulo afrancesado, por parte da voz feminina... e fiquei rendido a essa belíssima e poderosa voz. Estava convencido que era de uma conhecida cantora da Costa do Marfim, a Moniquer Séka... Mas, não, o João Melo que também é uma"autoridade" no que diz respeito ao panorama atual da música da Guiné.Bissau, esclareceu-me sobre quem é que faz dupla com o Binham (n. 1977) nesta belíssima canção que é a "Guiné nha Tera", incluída no álbum “Lifante Pupa” (2015) (à letra: Beijo do Elefante) do grande músico da Guiné-Bissau, jácom uma notável carreira internacionakl
Cito, com agrado, o oportuna e pronto esclarecimento que ele me fez, logo que saiu este poste:
(...) "Cumpre-me informar que esta canção de autoria do Binham, que trás como sombra uma história de vida que daria com certeza um belo de um filme, nesta interpretação não está a fazer dupla com a Monique mas sim com a não menos e extraordinária Joss Stone !...
" Joss Stone, é uma artista e cantora Inglesa que eu muito admiro e que, na sua digressão mundial, que durou seis anos, em cada país que parava, tentava gravar com um artista representativo do país uma canção que fosse de autoria do próprio. Na Guiné-Bissau, encontrou-se com o Binham e, fizeram esta gravação junto ao Forte de Cacheu que ficou com um enquadramento espetacular!
"Tive ainda a oportunidade de, quando de uma das minhas visitas à Guiné-Bissau (2017 ou 2019), me ter deparado com uma exposição no Centro Cultural Francês em Bissau totalmente dedicada a estre extraordinário Binham!
"Existem muitos bons artistas que atualmente fazem músicas Guineenses que enchem a minha playlist e me acompanham no carro em viagens mais longas... Não somente amo aquela terra, como as suas gentes como as suas tradições e músicas!" (...)
"Guiné Nha Tera", do cantor guineense Binhan (n. 1977).
“Guiné nha Terra” (feat. Joss Stone)
É um tema de homenagem à Guiné-Bissau, que combina ritmos de kizomba/zouk com elementos tradicionais.
2. Binham é um cantor e compositor de temas intimistas mas também de intervenção social. Tem uma história de infància duríssima: com um ano, doente, foi considerado uma criança-irã e esteve condenado a morrer, por abandono nas margens do rio, por decisão paterna. Nasceu no Biombo, mas cresceu em Catió.
O infanticídio ainda é um problema ( de saúde pública, complexo, de etiologia multifactorial) na sociedade guineense, tal como o era na sociedade portuguesa até finais do séc. XIX.
(...) Binham (...) tem uma canção sobre o pai que nunca gravou na sua discografia: aquela em que conta como ele o quis matar quando ainda era bebé.
(...) Binham tinha um ano quando foi abandonado para ser levado pela maré porque, reza a tradição, algumas crianças são espíritos que têm que ser devolvidos à natureza.
A lei da Guiné-Bissau protege este costume e atenua a pena de quem matar bebés, seguindo a crença. Mas nem era preciso, porque as comunidades encobrem os casos logo à partida e nunca ninguém foi investigado ou julgado.
O pai de Binham encomendou a cerimónia ( ao curandeiro) porque o filho adoecia com frequência e estava a levar muito tempo para começar a andar, sinais de uma 'criança irã'.
Deficiência, convulsões e gémeos são outros motivos para abandonar bebés que são também 'bodes expiatórios' de 'coisas negativas', como 'a morte da mãe no parto', explica Filipa Gonçalves, 28 anos, psicóloga e coautora do estudo 'Crianças irã: uma violação dos direitos das crianças na Guiné-Bissau'. "(...)
Tradução do crioulo para português: LG + assistente de IA / ChatGPT
Binhan:
Se fores à Guiné,
se fores à minha terra, leva o meu pedido.
Se por acaso voltares,
quando voltares, traz-me resposta ao meu recado.
Também... O meu recado, sim, o meu recado.
Monique Séka:
Guiné-Bissau, tu és a minha terra, a terra que é minha. Guiné-Bissau, tu és a terra dos meus pais. Mas se Deus quiser, a Guiné vai levantar-se firme. Não vais ficar só a chorar.
A minha terra é de um povo cansado, mas se Deus quiser, Guiné, vais melhorar.
Eu não quero ver-te na tristeza. Eu não quero ver-te no sofrimento. Eu não quero ver-te na tristeza, ó Guiné, ó! Liberta os teus filhos, dá-lhes amor.
Amor, felicidade e harmonia para ti, Guiné. Amor, felicidade e harmonia para todos os filhos da Guiné.
Quem não quer ver-te feliz, ó Guiné, é porque está cansado, perdeu a esperança. Mesmo que queiras, às vezes não consegues mais viver, tens sede… o guineense luta até ao dia da morte. Ó Guiné-Bissau, ó minha terra, ó meu povo, sim!
Guiné-Bissau, se Deus quiser, vais sair desta tristeza. Deus há-de iluminar o coração dos teus filhos, filhos que hão-de tomar consciência para que o país volte a ter alegria.
Educação, luz, saúde, água — para que nada falte.
Ouvi, ouvi, ouvi bem! África, minha mãe, chora comigo, por favor! Fala alto, a mãe veio avisar, África, a mãe veio avisar do mal.
Refrão final:
Alô, alô, minha terra! Guiné, Guiné-Bissau! (Alô, alô, alô, Guiné!) Alô, alô, minha terra! (Eu quero ver-te, Guiné, feliz um dia!) Guiné, Guiné-Bissau! (O teu povo não vai parar, mesmo cansado!) Alô, alô, minha terra! Guiné, Guiné-Bissau!
Observação - A canção é uma mensagem de dor, amor e esperança pela Guiné-Bissau... Também uma oração para que o país supere o sofrimento e renasça. Binhan fala como filho da terra, e Monique Séka acrescenta uma dimensão pan-africana, chamando a “África mãe” a solidarizar-se com o povo guineense.
(...) Este era de facto um posto de “mala-posta", muito importante neste corredor de Guileje, onde os guerrilheiros descansavam e se alimentavam em trânsito para operações militares na região sul. Todo o arroz aqui apreendido dava para alimentar um exército durante vários dias.
O elevado número de moranças, os abrigos subterrâneos, bem camufladas na vegetação, a quantidade de arroz (as suas rações de combate), bem como a grande quantidade de tabaco e material de propaganda, era a confirmação de estarmos perante uma importante base do PAIGC no interior da Guiné. Esta ação foi em rude golpe na logística do PAIGC no abastecimento de parte da zona sul da região.(...)
Corredor de Guileje, corredor da morte, para as NT; carreiro do povo, estrada da liberdade, para o PAIGT... Cada um chamava-lhe o que lhe dava na real gana... Mas continua por fazer o "balanço final" dos combatentes que, de um lado e do outro, lá tombaram...
Nhacobá, que pretendia ser um marco luminoso da "estrada da liberdade da Pátria", ponto fulcral do "carreiro do povo", base logística do PAIGC...hoje não existe mais. É apenas um ponto do mapa do Google, perdido na mancha verde do coberto florestal, nas proximidades do mítico Cantanhez...
Nhacobá foi arrasada pelos "bulldozers" da engenharia militar... Por ordem de Spínola. A população, resignadda, aceitou, ser "reordenada" em Cumbijá, em 1973/74... E lá está até hoje com a "autoestrada" do sul a atravessar a tabanca, que até já tem uma equipa de futebol, os "Tigres do Cumbijã", e um patrocinador, "tuga", o João dos Reis Melo, de Alquerubim...
Que diria o homem grande, Amílcar Cabral, agora curvado sob os seus 100 anos, se ainda fosse vivo ?! ... Contra quem iria brandir a bengala de ancião ?... Os grandes homens, e os líderes (e o Amílcar Cabral foi um deles), são tão incapazes de ler o futuro como qualquer um de nós, pessoas comuns.
Afinal, o povo quer é pão e circo...Ontem como hoje e amanhã... Os sucessores de Amílcar Cabral não perceberam isso, que ideologia(s) não enche(m) barriga(s).
Guiné > Zona Sul > Região de Cumbijã > Cumbijã > BCAV 8531, 1972/74) > O destacamento (ou melhor..."acampamento") do Cumbijã.
Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > CCAV 8531 (Cumbijã, 1972/74) > Tabanca de Nhacobá, até então considerada "área libertada do PAIGC", ocupada num “golpe de mão” pela CCAV 8351 no dia 17 de maio 1973 no decurso da operação Balanço Final (17 a 23 maio 1973). Na foto, o Joaquim Costa. A cabra Joana era natural daqui, foi um dos "despojos de guerra", levados para o Cumbijã. A aldeia foi arrasada pelos "bulldozers" da engenharia militar e a população realojada num reordenamento.
Gondomar > Biblioteca Municipal > 9 de novembro de 2024 > Sessão de apresentação do livro "Crónicas de Paz e Guerra" ( Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp.)
Três Tigres do Cumbijã: oo centro, o Joaquim Costa; à esquerda, o João Melo, ex-1º cabo cripto, das CCAV 8351 (Cumbijá, 1973/74); à direita, o Mendes (que veio de propósito da zona onde vive, na Serra da Estrela); um quarto Tigre, o Gouveia, não ficou nesta foto...
1. O Joaquim Costa Joaquim Costa, minhoto de V. N. Famalicão, conterrâneo da nossa senhora enfermeira pqdt Rosa Serra, vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros. É engenheiro técnico reformado.
Foi também professor do ensino secundário (os últimos 20 anos em Gondomar, como diretor escolar). Na outra "incarnação" foi Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351/72, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74).
É autor da notável série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã" (que, em grande parte, já saiu em dois livros com a suas memorias, um em 2022 e outro em 2024).
A história da cabra Joana já foi aqui publicada no nosso blogue. Deu origem até a vários "passatempos de verão", com o pessoal escrever sobre esta "fábula" ( que, segundo o dicionário, é uma composição literária, em verso ou em prosa, geralmente com personagens de animais, com características humanas, e em que se narra um facto cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção).
A fábula da cabra Joana e do cão rafeiro Tigre do Cumbijá é afinal uma metáfora sobre aquela "drôle de guerre", uma expressão francessa intraduzível (a não ser com muitas explicações...), que a foi a nossa, que afinal não foi bem a nossa:
Portugal não estava oficialmente em guerra contra nenhum outro Estado soberano ou potência estrangeira;
não cortou relações diplomáticas com ninguém (nem com Cuba que mandou cubanos poara a Guiné para dar uma "ajudinha internacionalista" ao senhor engenheiro!);
uns diziam que lutávamos contra o "terrorismo", outros proclamavam que estávamos ali a "defender a civilização cristã e ocidental";
outros ainda, mais cínicos e calculistas, desvalorizavam aquela "drôle de guerre", chamando-a "guerra de baixa intensidade...
Para mim, que também a fiz, foi uma "merda de guerra", em que no fim todos perderam: voltando à fábula, não houve vencedores nem vencidos, mas perdedores, incluindo a cabra Joana e o cão rafeiro chamado Tigre do Cumbijã...
Saiu, entretanto, uma nova versão da história da cabra Joana, da autoria do Joaquim Costa, agora, inserida numa coletânea de poemas e contos "Anjos da Prosa e da Poesia: Volume V (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2025).
O autor mandou-ma em 4/10/2025, com a seguinte mensagem: "Porque hoje é dia do animal, resolvi lembrar a cabra Joana nascida e criada em Nhacobá e levada compulsivamente para Cumbijã. Este conto foi publicado numa coletânea sobre prosa e poesia."
Recorde-se o contexto: a cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada pelo PAIGC, no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores. Foi levada, a Joana, para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o Tigre de Cumbijã, mascote do pessoal.
Estive hesitante em publicar esta versão na série "Humor de Caserna", mas achei, por fim, que ficaria melhor a dar continuidade à série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", do Joaquim Costa...
Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra Joana que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã, o cão rafeiro Tigre... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.
Era uma vez duas famílias que viviam numa terra distante, de uma beleza que se entranhava no corpo e na alma como o pó vermelho das suas picadas.
Aqui viviam, desavindas, ao que parece, por causa de uma bandeira.
Uma era a família IN, que vivia numa bonita bolanha, nas margens de um bucólico rio, com grandes plantações de arroz e lindas palmeiras, de seu nome Nhacobá.
A outra era a família Tigre, que vivia todos os dias com os olhos e a alma bem longe dali, que habitava uma aldeia próxima, que ela própria construiu, de seu nome Cumbijã, que odiou e... quase amou.
Os arrufos entre estas duas famílias eram constantes, com investidas ousadas a casa uns do outros, tentando a sua expulsão da região.
Entretidos nestes arrufos, os senhores da guerra (especialistas do pionés no mapa), decidiram (sem consultar ninguém, ) que os Tigres investiriam em força sobre a família IN, impondo a sua lei.
Assim foi, mas com perdas irreparáveis e inocentes de um lado e do outro.
Como era habitual, nas operações de alto risco, quase todos os soldados beijavam, à saída, o seu amuleto da sorte (o seu Anjo da Guarda): a foto da namorada ou dos pais, da(s) madrinha(s) de guerra, um santo devoto, uma folha arrancada à revista inglesa Penthouse e outros o seu inseparável mapa (mapa operações pontos de artilharia), que guardavam num dos bolsos do camuflado mais perto do coração.
Como é comum, desde os primórdios, quem vence tem direito aos despojos, neste caso: arroz, cigarros, fósforos cubanos e livros escolares (impressos na Suécia) com mensagens estilo Estado Novo (mas cujos heróis eram outros) e... uma cabra que chamou a atenção pela coragem demonstrada na defesa da sua aldeia, levantando as suas patas aos invasores e mostrando assim a sua indignação.
Esta irredutível cabra, como passou a fazer parte do despojos, acompanhou os Tigres de volta a casa.
Aqui quem reinava era o cão rafeiro Tigre, pelo que, no dia da chegada a cabra foi apresentada ao rei. Não foi um encontro fácil e só não se chegou a vias de facto dada a pronta atuação da guarda pretoriana.
Esta irredutível cabra, pela sua coragem e ousadia, ganhou a simpatia de toda a população, ou quase, já que em todo o rebanho há sempre a sua ovelha ronhosa!
Tinha esta irreverente cabra, a quem foi dado o nome de Joana, cinco predadores na aldeia:
o rei Tigre que nunca aceitou partilhar o protagonismo com este estranho animal, contudo, neste caso, não se sabia quem era o predador de quem;
o vagomestre, que tratava dos comes & bebes, que fitava a Joana com os olhos vermelhos de quem já a está a ver a ser esfolada e transformada em estilhaços de carne (coisa rara na aldeia) para o arroz;
os três agricultores improváveis do Cumbijã que, fartos de ração de combate, construíram hortinhas em pleno teatro de guerra.
A cabra Joana, tal como a burra no Alentejo, não resistia às viçosas alfaces, saltando a cerca das três hortinhas, lambuzando-se com a frescura das mesmas, com a compreensível indignação dos proprietários das plantações.
Na defesa da Joana passou a haver, 24 sobre 24 horas, um guarda-costas, armado de G3 com bala na câmara.
Só assim é que a mesma resistiu até ao dia em que os Tigres abandonaram a sua casa, no Cumbijã, a caminho do Bissau, para apanhar o avião que os levaria finalmente à sua terra de origem.
Todos, sem exceção, verteram uma lágrima, já com saudades da cabra Joana e do cão Tigre. Comove-me saber que uma e outro, provavelmente, também deixaram cair uma lágrima... salgada!
De um momento para o outro, sem que ninguém o decretasse, cessaram as hostilidades e as duas famílias promoverem festas conjuntas trocando prendas e abraços. Parecia que da noite para o dia o mundo tinha virado do avesso. Prova que a guerra não é solução para nada. Se quem a decreta fosse obrigado a combater nas linhas da frente, o mundo viveria eternamente em paz.
Estas maravilhosas criaturas, sempre que um grupo saía para o mato saltavam alegres e divertidas como desejando boa sorte. No regresso logo corriam para o cavalo de frisa (a porta de entrada) entusiasmadas com a sua chegada.
No dia em que definitivamente os Tigres abandonaram o Cumbijã, assistiram em silêncio a todo o seu frenesim e entusiasmo, como pressentindo o que estava para acontecer. Ao saírem do cavalo de frisa (agora porta de saída) em grande algazarra, estas ficaram imóveis, com o cão Tigre produzindo um ruído que parecia de choro e a cabra Joana levantando ligeiramente uma pata, vendo-nos desaparecer por entre a nuvem de pó vermelho da picada, como que dizendo: "E nós?"...
Não se sabe o que aconteceu depois, mas teme-se que esta história, pelos relatos que foram chegando, não teve um final feliz...
Ao que parece, nem os macacos se salvaram!..
In: Anjos da prosa e da poesia. Vol. V / Adelina Santos... [et al.] ; coord. Ana Maria Bessa, João Carlos Brito. - 1ª ed. - Rio Tinto : Lugar da Palavra, 2025. - 144 p. ; 23 cm. - ISBN 978-989-731-226-7, pág. 100.
(Revisão / fixação de texto: LG)
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cumbijã > Maio de 2025 > Três vistas aéreas da atual tabanca
1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Costa, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351/72 - "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), com data de 19 de Agosto de 2025:
Bom dia Luís,
Aqui vai a minha prova de vida … e de férias.
Cumprindo religiosamente uma tradição que todos os anos se renova, toda a família se reúne no mês de agosto no maravilhoso Douro, recarregando as baterias para mais um ano de trabalho (ou descanso, no meu caso).
O local escolhido este ano permitiu-me contemplar (com paragem obrigatória), a muito citada neste blogue QUINTA DE CANDOZ.
Estive quase tentado a entrar e quem sabe provar um bom verde branco com um naco de presunto e broa de milho. Fica para a próxima.
Estive a ler alguns dos “primeiros contactos” enviados ao blogue , então ainda incipiente, de Carlos Vinhal, Jorge Cabral, Beja Santos, Virgínio Briote e muitos outros.
Revivendo e pondo-me nas situações destes nossos camaradas descobrindo o nosso blogue e o que ele representava como catarse e uma porta aberta para um mundo que lhes trazia um misto de saudades e dores, não pude deixar de ficar emocionado com aqueles primeiros testemunhos.
Fizeram-me reviver também a mim os meus primeiros contactos, quando, através do blogue, procurava encontrar o Zagalo que fui ainda ver num hospital em Lisboa e depois vim a conhecer pessoalmente o Luís Graca, o Beja Santos e logo a seguir vários indivíduos que tinham sido meus camaradas em Mafra, Lamego, Madeira e depois na Guiné.
Passados 33 anos, de férias numa visita a Portugal viria a ter ocasião dum primeiro encontro em grupo com camaradas da minha companhia, a CCAÇ 1439, seguido mais tarde por um outro encontro na Madeira…
Como são fortes estas lembranças, que passados tantos anos os revivemos como se os tivéssemos vivendo outra vez. E logo a seguir fui ler o teu post nº 1, de 23 de Abril de 2004, a com a tua homenagem às mulheres portuguesas “que se vestiam de luto” rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso de seus filhos… rezando o terço à noite"...
E logo a seguir li a carta enviada por um soldado à sua madrinha de guerra, numa véspera de Natal!
Puxa vida! Se celebrar o aniversário é para ser algo “emocionante", não podias ter feito melhor…Obriga-nos a reagir e a ser fortes para esquecer esse passado/pesadelo ; e de feridas cicatrizadas saber agora seguir em frente...
(iii) Joaquim Costa (Vila Nova de Famalicão) (87 referèncias no blogue):
Aos pais e mães que deram vida a este blogue, os meus parabéns pela bonita idade. Saudações particulares ao Luís e ao Carlos Vidal, pela sua persistência, resiliência... e paciência.
Um grande abraço do eterno periquito, Joaquim Costa
1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Costa, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351/72 - "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), com data de 15 de Abril de 2025:
Olá Luís,
Aqui estou eu a fazer prova de vida.
A leitura diária do nosso Blogue evidencia a inexorável lei da natureza. Cada vez somos menos.
Mas, enquanto houver dois ex combatentes, os encontros anuais vão continuar.
Aqui dou conta do encontro dos Tigres de Cumbijã, na linda cidade de Castelo Branco.
Como de poeta e de louco todos temos um pouco aqui vai a minha homenagem aos Tigres e a todos os ex combatentes.
BOA PÁSCOA
Joaquim Costa
O TIGRE
Em Estremoz, mourisca terra
Tigres ouvem sentença
Seus padrinhos de guerra
Dragões de Olivença
De Portalegre a Marvão
Madrinhas se procuraram
Discursos fora de mão
Deste Alentejo zarparam
A sorte Guiné ditou
Estúpida guerra enfrentaram
Três gritos por quem lá ficou
Com o povo se emocionaram
No regresso ao seu ninho
De todos um pouco levaram
Ficaram amizades, carinho
Tigre nos corações tatuaram
Foto nº 1 > Três Tigres do Cumbijã: oo centro, o Joaquim Costa; à esquerda, o João Melo, ex-1º cabo cripto, das CCAV 8351 (Cumbijá, 1973/74); à direita, o Mendes (que veio de propósito da zona onde vive, na Serra da Estrela); um quarto Tigre, o Gouveia, não ficou nesta foto...
Fotpo nº 2 > Mesa: da esquerda para a direita, (1) João Melo, (ii) o autor, Joaquim Costa; (iii) Manuel Maria, apresentador; e (iv) Teresa Couceiro, responsável pela Biblioteca Municipal de Gondomar.
Foto nº 3 > O autor, usando da palavra
Fotpo nº 4 > à direiuta, João Carlos Brito, professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra. com sede em Rio Tinto, Gondomar.
Foto nº 5 > Aspeto da assistênicia: na segunda fila, logo na ponta esquerda, o "Carvalho de Mampatá";
Foto nº 6 > Os netos ("alfacinhas") do autor, muito compenetrados da sua tarefa de vender o livro do avô. (Para efeitos legais, são fotografados com a autorização dos pais...)
Foto nº 7 > O João Melo e o Joaquim Costa na sessão de autógrafos
Foto nº 8 > Na fila para os autógrafos, colegas do prof Joaquim Costa, diretor da escola secundária de Gondomar durante mais de 20 anos,
Gondomar > Biblioteca Municipal > 9 de novembro de 2024 > Sessão de apresentção do livro "Crónicas de Paz e Guerra" ( Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp.)
(i) ex-fur mil at arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74);
(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, com mais de 7 dezenas de referências no blogue;
(iii) engenheiro técnico (ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto);
(iv) foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar:
(v) minhoto, de Vila Nova de Famalicão, vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;
(vi) tem página no Facebook;
(vii) acabou de lançar o seu livro "Crónicas de Paz e Guerra", no passado dia 9, sábado, às 15:00 na Biblioteca Municipal de Gondomar (*)
1. Mensagem do Joaquim Costa:
Data - 12 nov 2024, 12:02
Assunto - Apresentação do livro, "Crónicas de paz e guerra"
Olá, Luís!
Aqui vai uma pequena reportagem sobre a apresentação do meu livro, "Crónicas da Paz e Guerra",- que teve lugar na Biblioteca Municipal de Gondomar.
Estamos habituados a ver na apresentação de livros de ex combatentes uma plateia de camaradas que participaram na guerra colonial, nas três frentes, todos com aparelhos auditivos e com auxiliares de locomoção. Fico feliz, como se pode ver nas fotos, por, para além de um ou outro combatente, esta estar repleta de muita juventude.
Contudo foi uma honra ter na plateia, como se vê na foto, o nosso grande amigo Carvalho de Mampatá e a sua esposa; os tigres Gouveia, Mendes e Melo e suas esposas; o nosso grande amigo Francisco Batista, bem como um camarada periquito do BCAÇ 4513. Sei que estou a correr o risco de me esquecer de alguém, pelo facto peço desculpa.
Constituição da mesa:
Dr. Manuel Maria – professor, escritor (publicou um romance: “Checa Pior que Turra" sobre a sua comissão na então província de Moçambique);
Dr. João Carlos Brito – Professor, escritor e editor.
Dr.ª Teresa Couceiro – Responsável pela Biblioteca Municipal de Gondomar.
João Melo – Cripto da Companhia dos Tígres do Cumbijão. Homem bom, já com várias viagens solidárias ao Cumbijã, fazendo-se acompanhar com contentores de materiais escolares e outros.
Joaquim Costa – O autor, também conhecido pelo "Furriel Pequenina de Cumbijã"
2. Mensagem do António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá" (ex-fur mil enf CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), Data - sábado, 9/11/2024, 21:41
Meu caro Luís
Estive hoje na Biblioteca Municipal de Gondomar para assistir à apresentação do livro "Crónicas de Paz e de Guerra" de autoria do nosso Joaquim Costa, Furriel Pequenina de Cumbijã.
Foi uma tarde bem passada. Para além dele, falando só de combatentes, estavam três camaradas dos Tigres e um camarada do Batalhão 4513, de Aldeia Formosa.
Com o Joaquim Costa, tão afreimado a autografar o seu excelente livro, não deu para falar muito, mas o mesmo não aconteceu com o outro pessoal, com quem passei um bom tempo a partilhar vivências das nossas vidas sofridas por terras de Tombalí e Quínara.
O Melo, Cripto dos Tigres, esteve na mesa para falar do segundo e do terceiro capítulos do livro, numa pequena mas sentida abordagem dos tempos da tropa e da guerra.
A propósito de tropa e guerra, coisas bem distintas para nós que passámos por ambas as fases, ainda há quem pense que são a mesma coisa. Digo isto porque alguém bem intencionado mas desconhecedor, achou que aqueles capítulos bem poderiam fundir-se num só. Não acho.
É certo que há familiares meus que me dizem, aquando de mais um encontro com tabanqueiros: " lá vais tu para mais um encontro com os tropas". Respondo até à exaustão : não é com tropas, é com combatentes que foram mordidos por mil mosquitos, calcaram o mesmo chão sob sol escaldante, ouviram gritos e viram moribundos e mortos.
Voltando ao livro, apresentado numa sala cheia, sobretudo de colegas professores, foi lida a tua excelente mensagem que mereceu o apreço dos presentes expresso numa grande ovação.
Saúde para ti e obrigado pela tua dedicação a todos os combatentes.
Um grande abraço
Carvalho de Mampatá
3. Mensagem do nosso editor LG, para ser lido na sala como "Saudação ao antigo combatente, 'tigre do Cumbijã', professor, escritor e grão-tabanqueiro Joaquim Costa":
O Joaquim pertence a uma geração que não pode dizer: "Cheguei, vi e venci"...
Tudo o que conquistou (tudo o que conquistámos) foi com "sangue suor e lágrimas"... A expressão pode estar estafada e conotada. Mas continua a ser apropriada para caracterizar a nossa geração.
Uns chamaram-na "geração dos "baby-boomers", nascidos com o final da II Grande Guerra, em famílias grandes (e em geral pobres ou remediadas); outros pintam-nos com outras cores, caso do escritor e antigo combatente Carlos Matos Gomes, num grande livro autobiográfico recente: "Geração D", a que nasceu com a Ditadura, fez a guerra colonial e restabeleceu, em Portugal, a Democracia.
O Joaquim é uma rapaz da nossa colheita e a sua história de vida exemplifica muito bem o que foi o trajeto de todos nós: a paz, a liberdade, a democracia, a equidade ou igualdade de oportunidades,o direto à saúde, à educação, à cultura, ao trabalho decente, seguro e saudável, etc., etc,...Tudo isso foi tirado a pulso, foi conquistado com inteligência emocional, luta, coragem, paixão, resiliência, amor e... humor!
Acho que esta é também a chave para a leitura deste seu belo livro (agora revisto, melhorado e aumentado), "Crónicas de paz e guerra".
A nossa Tabanca Grande tem muito orgulho por ele se sentar, connosco, à sombra do nosso simbólico poilão, acolhedor e fraterno. E por partilhar connosco, em livro, no blogue, no facebook, o melhor das suas histórias e memórias da guerra e da paz.
Neste dia de festa, tenho a pena de não poder estar covosco, mas saúdo todos os que, familiares, vizinhos, amigos, colegas, camaradas, quiseram ajudar o Joaquim a ter uma tarde mais luminosa, na terra, Gondomar, que ele, minhoto, também adotou como sua. E, da minha parte, desejo-lhe tudo de bom, a começar pela saúde... Porque ele merece tudo.
Obrigado, Joaquim, e até ao próximo... livro! (**)
(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74);
(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, com mais de 7 dezenas de referências no blogue;
(iii) engenheiro técnico (ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto), foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar:
(iv) minhoto, de Vila Nova de Famalicão, vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;
(v) tem página no Facebook; e, por fim, e não menos importante,
(vi) perdeu recentemente a sua querida Isabel;
(vii) e vai lançar o seu livro "Crónicas de paz e guerra", no próximo dia 9 do corrente, sábado, às 15:00 na Biblioteca Municipal de Gondomar (*)
1. É o relato, sucinto mas magistral, além de bem-humorada, do que era o terror, no nosso tempo de meninos e moços (**), o dia do exame de admissão ao liceu (na capital de distrito, neste caso em Braga) ou de admissão ao ensino técnico (na sede concelho, Vila Nova de Famalicão).
O autor, Joaquim Costa, fez os dois exames, com 11 anos, em 1961 (já a guerra colonial tinha "rebentado em Angola", sobrando para a ele, mais tarde, a da Guiné, em 1972/74).
Acabaria por entrar no ensino técnico, no ano letivo de 1961/632.
No excerto que selecionámos, interessa-nos a primeira parte do seu depoimento, as peripécias que viveu antes de poder entrar no curso de montadores eletricistas (na sede de concelho da sua terra natal) e depois na Escola Industrial do Infante Dom Henrique, no Porto, e finalmente no Instituto Industrial do Porto (hoje, Instituto Superior de Engenharia do Porto / Instituto Politécnico do Porto). Com a tropa, pelo meio...
Enfim, um percurso escolar muito semelhante ao que muitos de nós trilhámos: recorde-se, em todo o caso, que não havia ensino técnico em todas as sedes de concelho e o ensin0 liceal era para uma minoria relativamente privilegiada, funcionando apenas nas capitais de distrito.
E ainda foi do tempo da Mocidade Portuguesa, enquanto frequentou a escola técnica, durante 4 anos:
"Aos sábados de manhã, equipado de calções e camisola branca com o emblema das cinco quinas ao peito, lá ia ele, contrariado, para atividades da Mocidade Portuguesa. Marchar 'contra os canhões' e cantar o seu hino: 'Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim'..." (pp-. 209/210).
O terror do "exame de admissão" (à escola técnica ou ao liceu)
por Joaquim Costa
Sete anos feitos, lá vai ele conhecer a D. Natália (a fera!), carregando a sacola de serapilheira devidamente equipada: livro da primeira classe, lousa, “riscotes”, uma tabuada e uma pequena almofada de trapo velho para limpar a lousa depois de lhe cuspir.
Tal como na cateques, as raparigas que faziam o percurso para a escola com ele, aqui desapareciam e só as voltava a ver no regresso a casa.
Aos onze anos, da sua sala, apenas ele foi para explicações para casa de uma outra professora para fazer o exame de admissão à escola técnica.
Foi na casa desta simpática professora que viu, pela primeira vez, a beleza de um pavão abrindo as suas penas coloridas em leque.
Foi também aqui que viu em direto, na televisão, a colocação da última parte do arco da Ponte da Arrábida. Meio país dizia que a “coisa” ia acabar no rio. Foi um dia em que o povo se encheu de orgulho dos seus engenheiros.
No final, foi convidado a fazer uma redação sobre o acontecimento já que a professora tinha uma convicção muito forte que ia ser o tema do exame.
Mais convicto que a professora, acabou por memorizar a sua redação que esta classificou de Muito Bom.
A sua convicção era tão forte que “despejou” tudo no exame sem olhar ao que lhe era pedido: foi quase ao lado, já que o pedido era uma redação sobre os Descobrimentos. Mas a redação comparava os dois extraordinários feitos!
A professora estava toda entusiasmada. Não tinha dúvidas que, depois dos dois meses de explicações, o rapaz se ia safar.
Chegado o dia, logo pela manhãzinha, ainda o galo não tinha cantado, já sua mãe lhe vestia o fato que o pai tinha mandado fazer, por medida, ao alfaiate da terra. Tudo novo: fato, camisa, gravata e sapatos. Até o cão fadista estava espantado.
Lá vai ele apanhar a carreira para a vila, metido num colete de forças, completamente desconfortável, transpirando por todos os poros e com os pés a moerem-lhe.
Chegou à vila com tonturas e enjoado, acabando mesmo por vomitar sujando o impecável fato, pois foi a primeira vez que andou de camioneta. Da vila só conhecia a feira, percurso que sempre fez a pé com a sua mãe.
Lá o levaram até ao ginásio da Escola, com dezenas de alunos sentados, e com ar de assustados, cada um na sua mesa devidamente equipada com uma pena e um tinteiro.
Uma velha professora e mal-encarada coloca na sua frente uma folha de papel, indicando o sítio onde devia colocar o seu nome e número do bilhete de identidade.
Já com o suor a cair-lhe na folha de papel e com as mãos a tremerem, lá tentou entender-se com a pena e o tinteiro para cumprir a tarefa que lhe foi imposta.
Vai com a pena ao tinteiro e começa a tarefa. Por muito que carregasse na pena a tinta não corria.
Começou a ficar atrapalhado já que se tinha apercebido que todos tinha acabado a tarefa e ele ainda não tinha começado.
Nova ida ao tinteiro e nada. Começa a abanar a pena para ver se a tinta corria. Correu tipo ketchup, acabando por borratar toda a folha. Logo tentou limpar pelo que, obviamente, a inutilizou .
Chamou a velha e mal-encarada professora que, ao ver todo aquele estardalhaço, ainda ficou mais velha e mais feia com a cara toda vermelha de raiva. Contudo, lá mandou limpar a mesa, tendo-lhe entregado uma nova folha e uma nova pena que felizmente deixava a tinta correr.
A prova, depois de todos estes percalços, não podia ter corrido pior.
No final, já aliviado de toda aquela odisseia, lá contou à professora o desastre que foi a sua prova. Ele estava aliviado e feliz por tudo ter acabado, mas a sua professora estava muito triste, tendo-lhe mesmo corrido uma lágrima pelo seu lindo rosto.
A professora não se resignou e convenceu o seu pai que acompanhasse um outro aluno das explicações, com familiares em Braga, a fazer o exame de admissão aos liceus. Ele e o pai acederam mais por respeito à professora, já que estava fora de hipótese, com onze anos, ir estudar para Braga. Na altura só havia Liceus nas capitais de distrito.
Lá foi ele numa de passeio, com uma roupinha lavada e mais confortável, numa “carrimpana” do pai do seu amigo até Braga, vencendo as voltas de macada onde toda a gente vomitava.
A sua professora ficou maravilhada com o seu desempenho.
Entretanto saíram os resultados e para surpresa sua e da professora tinha entrado na escola técnica. Ainda hoje não sabe os resultado do exame de admissão ao liceu. (...)
(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)
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Fonte: Excerto de: "O sistema de ensino antes do 25 de Abril de 1974: caso prático. In: Joaquim Costa - "Crónicas de paz e guerra", Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, pp. 207/209 (Com a devida autorização do autor...)
Também disponível, a história na íntegra, na página do Facebool > Joaquim Costa > 13 de março de 2024, 11:46 > O sistema de ensino antes do 25 de abril de 1974: caso prático
Capa do livro de Joaquim Costa - "Crónicas de paz e guerra: o Minho a Tombali (Guiné)... e o Porto Por perto". Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp, il. (+ de 80 fotos)